segunda-feira, 14 de novembro de 2011


Direto da revista Bravo!

Outra Babel

“Istambul”, de Orhan Pamuk


Há escritores que no rosto envelhecido trazem nas rugas a genealogia secreta dos pais, no olhar melancólico certo desenho cartográfico da infância, e no sorriso a gratidão pelo talento que tornou reabitáveis as fantasias perdidas do segundo mundo que todos parecem abandonar quando chega a nefasta maturidade. Orhan Pamuk é um desses escritores. Seus livros têm o mesmo familiar gosto manancial, alimentam-se desse primeiro sal da terra de sua meninice e juventude; a prosa emana intimidade e a Turquia lhe parece sempre uma grande família, mesmo que disfuncional. Todo país cabe no pórtico que é a imaginação de um grande criador, ainda que ele escreva sobre as mesmas ruas e gente. E Orhan não precisaria de um Nobel para ser reconhecido como tal, como o grande escritor que é: fica muito evidente após a leitura de Meu nome é vermelho, A vida nova O Livro Negro que Pamuk mais prestigia a academia sueca do que foi por ela prestigiado. É um romancista criativo e ambicioso, com livros plurais e de larga e potente duração, onde realidade social se funde com mitologia, onde a banalidade está casada com o sublime; e que possuem sabedoria, pertinência e, mais raro, uma generosidade ingênua e afetuosa. Todos esses elementos encontram-se misturados na graciosa prosa desse Istambul – Memória e cidade.
A primeira originalidade de Istambul está na ausência de trama, de um enredo discernível. Como as memórias de um escritor, não há um encaminhamento preciso de uma arqueologia vocacional – ao contrário, o leitor crê na pintura levando o menino Orhan mundo afora. Quando comparadas às memórias de Nabokov ou García Márquez, em Istambul escapa aquele reconhecível elemento de fatalidade que levará o narrador da memória a ser um narrador de vidas falsas. O que se tem é um jovem que não sabe o que quer num país que não sabe o que é. Justamente por faltar esse elemento de fatalidade, e por ser sincero em relação à descoberta dessa vocação tardia que lhe traria a felicidade de exercer seu verdadeiro talento, os anos de juventude de Orhan são os anos de observação contemplativa da cidade, contaminadas pelo olhar do pintor que não chegou a ser. Nascido em uma família abastada, de tendências seculares e com o desejo ocidental (diria até o ressentimento ao oriental), a Istambul de toda gente acaba por ser um cenário estrangeiro – Orhan é rico num país miserável; ateu numa população religiosa; transnacional numa sociedade nacionalista. Os olhos do menino Orhan vêem seu mundo com olhos alheios – seu pertencimento é conquistado, e a Istambul que vai tomando para sua alma é captada mais pela imaginação. Repara naquilo que não é visto; relembra o que é desejo esquecer; identifica-se com os restos arcaicos existentes nas fissuras de uma modernização forçada. Ao ser o ocidental da Istambul que o cerca, acaba sendo o ocidental de si mesmo.
Outra originalidade das memórias de Pamuk é o avançar algo ensaístico por temas do mundo da cidade. Como a enciclopédia de curiosidades do seu admirado Koçu que tão alegremente descreve por longos trechos do livro, Istambul elege para muitos capítulos personagens que estiveram na cidade e que dela fizeram relatos, escrevendo mais por motivos musicais do que por uma seqüência narrativa. Nerval e Gautier; André Gide; o pintor Melling que parece ser a inspiração por trás do romance histórico Meu nome é vermelho; Flaubert e sua resistência à cidade, e de quem admite veladamente ter usado uma idéia de romance nunca escrito para criar seu próprio romance Castelo Branco. O que impressiona nos relatos de Pamuk dos ocidentais que visitaram a sua cidade é sua gratidão aos seus textos, que ele relaciona amenamente ao fato de que Istambul nunca foi colônia do ocidente. Não há rancor na aproximação de Pamuk aos relatos dos orientalistas que admira. São nesses relatos que ele encontra detalhes que a maioria dos autores turcos – seus cronistas e historiadores – e as autoridades turcas – no seu desejo de apagar qualquer traço que resista à ocidentalização artificial de sua cultura – relegaram ao esquecimento, mas que para Pamuk são essenciais ao entendimento da alma turca. Talvez por ser paria do ocidente, talvez por não ser definitivamente um oriental, Pamuk seja o porta-voz perfeito da impossibilidade dessa fusão. Um colecionador excêntrico como Koçu e Tampinar, mas alimentado pela mesma alma (e concepção romanesca) burguesa que movem autores como Sandor Marái e Thomas Mann.
A melancolia de Istambul é consciente de que não está no passado certas respostas sobre o futuro turco. O passado não soluciona nada. Não há em Pamuk o desejo de recuperar o tempo; ele o aponta de forma amorosa, mas parece saber que a Turquia foi mais pobre e ignorante antes, quando era menino. A Turquia que herdou, o país que decidiu se ocidentalizar da noite para o dia a partir de decretos, dessa Turquia Pamuk parece não sentir saudades. Seu livro é mais um elogio à gente da cidade e da forma como sobreviveram à miséria que via no conforto esterilizado de sua janela. É a crônica de uma identificação que será consumada quando o jovem Pamuk pega distraidamente uma barca que cruza o Bósforo e se identifica com a gente pobre que, na sua humildade, parece trazer uma Turquia mais verdadeira e profunda, uma Turquia alheia aos valores modernos, e que não se reconhece como a parte arcaica e indesejável de seu próprio país. É a descrição dessa gente que movimenta o capítulo mais bonito do livro, “A hüzüm”, com seu parágrafo de sete páginas descrevendo os anônimos da cidade; e é a compreensão dessa gente e paisagem humana que o jovem Orhan irá buscar nos anos em que se dedicará à pintura das ruas solitárias e do Bósforo ao por do sol. Sabendo que vive numa Istambul diferente, isolada, até certo ponto artificial, Pamuk irá tomar o restante da cidade pela imaginação. E aí está a maior surpresa do livro: o elogio à obra de quatro autores completamente desconhecidos – narradores da melancolia dessa Istambul que Pamuk deseja captar: o poeta Yahya Kemal, o historiador Ekrem Koçu, o memorialista Sinari Hisar e o romancista Hamdi Tampinar. Longe de se colocar como o autor vitorioso produzido num país provinciano (como é a postura de um VS Naipaul), Pamuk se coloca como um humilde tributário de uma genealogia de grandes textos que o precederam. Seja pelo elogio crítico, seja pela identificação da alma, é espantoso perceber que nessas memórias o já internacionalmente conhecido Pamuk deseja tão francamente pertencer mais ao panteão impenetrável da prateleira turca que à biblioteca internacional do ocidente.
Intercalando a intimidade da casa com o marulho das ruas, fartamente ilustrada com belíssimas fotos,Istambul é uma leitura envolvente, bastante divertida e erudita. Nela temos a descrição das barcas que ligam as partes européia e asiática da cidade; um trecho que narra estórias de suicídios; uma longa e entusiasmada narrativa do Bósforo e seus humores oceânicos; a contradição de ser ateu num país religioso; a dor estranha de ter um pai sempre ausente; disseca a vida dos ricos, suas festas e modo de gastar estupidamente seu dinheiro; comenta as hilárias confusões de família; os caprichos da matriarca; das salas que se tornam museus repletos de fotos e móveis antigos; da intromissão da TV na vida urbana; das ruínas otomanas que convivem com os prédios modernos; das lojas gregas; dos bairros judeus; dos incêndios das antigas mansões de madeira; das brigas intermináveis com seu irmão mais velho e da imensa tristeza de viver longe dele; dos passeios ao longo do Bósforo nas barcas com a mãe ou nos carros possantes americanos do tio; o primeiro amor, a pintura, a amizade, a decepção. Istambul é uma narrativa que se inscreve entre as grandes obras de memória do século passado, livros como A Pessoa em Questão, de Nabokov, Um caminho no mundo, de VS Naipaul,Memórias de um burguês, de Marái, As Palavras, de Sartre, ou a maravilhosa trilogia de Canetti (clássico que merece uma reedição urgente). O único porém do livro Istambul é que termina justamente no dia em que Pamuk decide que se tornará escritor; no entanto, com uma continuação já prometida pelo próprio Pamuk, esse vácuo será em alguns anos devida e felizmente preenchido. E a outra mágica, a da transformação da experiência em ficção, da realidade numa segunda realidade, e que talvez seja a única real ausência que o leitor ansioso encontrará em Istambul, terá afinal seus bastidores revelados.

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